Saltar para o conteúdo

Este perfumista recria aromas de flores extintas através da análise molecular de pétalas preservadas.

Este perfumista recria aromas de flores extintas através da análise molecular de pétalas preservadas.

A primeira vez que conheci a perfumista que engarrafa flores perdidas, o atelier cheirava a cera de abelha e a chuva sobre papel antigo.

Ela estava curvada sobre um banco baixo, de cardigan de malha, coaxando um fio de vapor de um frasco de vidro como um luthier a extrair som de um violino. Na parede, pregada ao lado de esboços a lápis de pétalas e pistilos, havia uma fotografia de uma encosta calcária onde já não cresce flor alguma. Falámos em voz baixa, como se o ruído pudesse perturbar algo frágil. Havia ali uma sensação que não consegui nomear, como abrir uma gaveta numa casa onde já viveste e apanhar um sopro do teu próprio passado. Como se chama aquela mistura de conforto e nostalgia?

A sala onde o ar se lembra

Ela chama-se Margot Lane, uma perfumista tradicional que aprendeu desmontando perfumes na mesa da cozinha e raspando gordura de tabuleiros de esmalte antigos. Continua a guardar uma pilha de molduras de enfleurage, os aros de madeira manchados de âmbar escuro onde o óleo se infiltrou durante décadas. Quando levanta a tampa, o cheiro que escapa é um sussurro de estações passadas: gardénia de um verão já ido, jasmim fantasmagórico agarrado ao tecido. O extrator zumbe, a chaleira estala, e no canto um rádio sonolento murmura a previsão marítima como um encantamento.

Não é química de formação. É ouvinte. É assim que se descreve, pelo menos, batendo ao de leve com o dedo, manchado de lápis violeta, no lado do nariz. Para ela, uma fragrância é um acorde, e cada molécula é uma nota que deve ser afinada com a memória, a pele e a luz. “Uma flor não é uma coisa”, diz ela, “é uma atuação”. O segredo é recriar o espetáculo sem a intérprete.

No seu banco, as ferramentas são meio botica, meio escola primária: pipetas em frascos de compota, panos de cozinha, um pires lascado com um círculo de cera de abelha do tamanho de uma bolacha. Um pequeno leque de tiras de papel blotter abre-se como penas pálidas. Escreve a data em cada uma, depois o nome, sempre a lápis suave. Guarda as tiras antigas presas com elásticos. O tempo tingiu-as da cor do pergaminho.

Flores que deixaram o palco

Todos já tivemos aquele momento em que um cheiro nos faz cair por uma porta de alçapão para um lugar que pensávamos ter perdido. Para a Margot, essas portas levam a flores que desapareceram antes sequer dela nascer. Algumas esvaneceram do nosso campo quando se arrancaram sebes e se tratou a terra até algo que as flores não reconheceram. Outras desapareceram do habitat mais vezes do que deviam. Outras ainda foram apenas modas que ninguém guardou: um cravo de cottage vitoriana, uma roseira de folhas de fetos com um suspiro apimentado, um tabaco noturno que encantava traças e humanos e desapareceu em silêncio.

Guarda os nomes delas numa caixa de índices, ao estilo de biblioteca antiga. Cada cartão lista as últimas aparições da planta, notas de jardineiros com lápis de cera, e uma frase evasiva: as palavras que as pessoas usavam para descrever o cheiro. Diz que há graça nisso, porque as pessoas procuram comida e tempo para falar de flores. Crosta de pão, compota de damasco, trovão suave. Vira essas metáforas uma e outra vez, como conchas, até encontrar a que encaixa.

Sejamos honestos: ninguém faz isto todos os dias. Não é um plano de negócio, nem um esquema de marketing rápido. É algo mais parecido com cuidado, e luto. Margot trabalha devagar, e a espera faz parte do processo. Aprendeu que só se pode coaxar o que falta, nunca forçar.

Como se cheira uma flor que já não existe?

É aqui que o romance encontra a bancada do laboratório. Margot tem chave para uma gaveta num herbário de uma universidade perto de Bristol, onde os armários se fecham com estrondo, como cofres. Lá dentro estão pétalas prensadas há décadas ou séculos, achatadas como fósseis de papel. Parecem frágeis como asas de traça – e são –, mas ainda guardam traços químicos. Não perfume, precisamente. Mais os contornos dele.

Trabalha lá com um cientista que, meses após iniciarem a parceria, aprendeu a gostar de ouvi-la dizer “nariz” em vez de “cavidade nasal”. Colocam um fiozinho dentro de um frasco com a amostra, um cabelo que absorve os compostos voláteis que restam da pétala preservada. Esse fio vai à máquina que lê as moléculas pela velocidade com que correm e pelo modo como se partem: um cromatógrafo a gás acoplado a um espectrómetro de massas. O gráfico de impressão parece o perfil de uma cidade: cada pico, uma molécula; cada encosta, uma rua meio esquecida.

Os herbários nunca foram pensados para cheiros. São para o olhar e taxonomia, para catálogo e latim. E no entanto, o que resta nessas camadas prensadas já pode ser suficiente. **O olfato é um arquivo.** Frágil, com fugas, cheio de falhas, sim – mas mais vivo do que uma fotografia, porque actua sobre ti quer queiras, quer não.

A ciência sem bata

Pétalas antigas são teimosas. Os óleos oxidam, os açúcares caramelizam, os tons verdes desmoronam. Margot e o parceiro agrupam os picos em famílias: terpenos que cintilam como relva cortada, indóis que ardem suavemente no fundo, iononas que ficam como veludo de violeta na língua. O que falta tem de ser inferido, porque há dançarinos do coro que nunca chegaram ao palco do gráfico.

Contam com bibliotecas de referência e narizes humanos. Se o espectrómetro murmura “beta-damascenona”, Margot reconhece o leve suspiro de maçã cozida e rosa escura, e sabe onde encaixa no acorde. Se vem “cis-3-hexenol”, sabe que o tom verde deve ser contido ou se sobreporá a tudo. *Escrevi o nome da flor no meu caderno e sublinhei duas vezes.* Ela diz que a máquina lhe dá os ossos. Ela constrói a carne, o sopro e o rubor.

A voltar a montar um bouquet a partir de migalhas

No atelier, começa a pintar. Isolados naturais de salva esclareia e pinheiro de terebintina, uma gota tímida de ylang absoluto, um traço de broto de groselha negra vínica que dilui até quase desaparecer. Confia nas velhas competências como um padeiro confia nas mãos. Enfleurage para fixar notas voláteis. Um sussurro de tintura de lírio para dar um tom de pó, como pele tocada por algodão.

Deixa a base quente e humilde, evitando modernices arrogantes que nunca existiram numa flor silvestre. Nada de mega-almíscares trovejantes, nem aldeídos fluorescentes que abafariam a conversa. O objetivo não é deslumbrar. É sentir que se entrou à sombra e os olhos se vão habituando devagar. O que não pode ser recuperado, é substituído por analogia: uma lactona que convoca damasco de um primo coco, um efeito de chá branco criado com lavanda e petitgrain.

Preocupa-se com a precisão? “Sempre”, diz, “e nunca.” Uma flor não cheira igual na luz da manhã ou antes da chuva. Muda de hora a hora, petála a pétala. **Não se pode ressuscitar uma espécie, mas pode-se restaurar a presença.** Essa palavra – presença – parece resolver a questão. Presença é o que procura, e é o que perdura.

Fantasmas que pedem licença

Há dilemas morais aqui. Não toca numa amostra se o curador hesita, e limita a exposição do fio, quase com reverência. Partilha todos os dados com o herbário e lista os doadores nos frascos. Há dinheiro na nostalgia, e Margot sabe disso. Pratica preços justos e envia uma parte para uma associação de preservação de flores silvestres, cujos voluntários semeiam à mão nas bermas e campos.

O que faz não é rigor certificado. É uma conversa entre o que resta e o que é recordado. No rótulo há honestidade. Chama a estes perfumes “reconstruções”, não ressurreições, e indica a data da amostra mais antiga usada. Os frascos são pequenos, castanhos, os rótulos dactilografados. Parecem mensagens levadas pela maré.

Faz também uma versão sem cheiro, para quem quer a história sem o aroma. Intriga os de marketing, mas ela encolhe os ombros. Nem todos os fantasmas querem ser usados. Alguns preferem ser lidos.

O que cheiramos quando estamos de luto

Não esperava chorar, mas chorei, baixinho, quando ela abriu um frasco com o nome de uma flor que já iluminou encostas de giz com rostos estrelados. O topo era verde como uma ervilha estalada, depois veio um sopro de pimenta e rosa, e por fim algo feno-macio como sol de agosto no tapete do piquenique. Era delicioso. E era também o aviso de que quase tudo o que amamos, é emprestado.

Margot diz que, muitas vezes, as pessoas levam fotografias quando vêm cheirar. Uma avó no jardim muralhado, uma cerca vergada por rosas, uma criança com uma margarida no pulso. O aroma fica entre os rostos. A sala suaviza. **Isto é memória que se pode vestir.** Não cura nada. É uma forma de dizer o que não se diz em voz alta.

O primeiro spray, o trovão pequeno

No dia em que terminou a primeira reconstrução, um sopro invadiu o atelier e fez as tiras de papel esvoaçarem como bandeiras. Passou-me uma com um sorriso cúmplice. Aproximei-a do nariz e senti um leve estalido — casca de maçã verde, um traço de verniz mesmo na ponta, onde os aldeídos picam e saltam. Debaixo disso, o aroma abriu: agridoce, quase rosado, mas com uma base terrosa, chá, que o mantinha preso ao chão.

Ficámos muito quietos. É curioso como um cheiro pode calar uma sala. Havia um leve ruído de trânsito e um corvo a resmungar no céu. A minha mente correu para uma encosta desconhecida, para um verão que nunca tive. O perfume não era perfeito, e esse era o sentido. Não parecia um museu, parecia tempo.

Na pele, aqueceu. As iononas suavizaram, um toque de cumarina desenrolou-se numa nota de feno que me fez pensar em cricket na rádio e garrafas de limonada orvalhadas. O secar final foi um lençol de linho almiscarado, quase doce, levemente poeirento, como um livro que suspira ao abrir. Ela escreveu a hora na tira. Depois esperamos de novo.

O que as máquinas não conseguem engarrafar

Margot é a primeira a dizer que a máquina é uma ferramenta, não um oráculo. Consegue listar moléculas, não significados. Uma flor silvestre não é apenas um conjunto de voláteis; é patas de abelha, pó de giz, suor no pulso, o modo como o vento desliza na relva antes de nos tocar o rosto. Persegue isso com truques antigos: um fio de cera de abelha para criar a ideia de pólen, uma gota de semente de cenoura a sugerir terra, um sussurro de citronela tão suave que só impulsiona o ar, sem o morder.

Às vezes, um ensaio corre mal de forma deliciosa. Um lote de feno em tintura ficou húmido e deu cheiro a jornal molhado. Guardou um pouco mesmo assim, pois trazia uma luz de tarde impossível de obter de outro modo. Lembrou-me que a arte é, muitas vezes, o que se guarda, não o que se apaga.

Margot ri-se quando pedem uma vela. “Talvez um dia”, diz, “mas há coisas que querem ficar perto da pele.” Tem razão. Uma vela arredondaria os contornos, tirando as nuances. O pulso guarda melhor os segredos.

O arquivo que todos vamos construindo

Neste trabalho há urgência. O clima muda, os campos mudam de dono, as plantas viajam mal — se é que chegam a viajar. As gavetas do herbário guardam tesouros frágeis, mas não são infinitas. Ela fala de uma rede frouxa de perfumistas, cientistas e jardineiros que começou a registar cheiros antes de desaparecerem. Alguns levam cúpulas de headspace para os jardins e inclinam-se sobre flores da meia-noite com a delicadeza de cirurgiões e ladrões.

Vi-a embalar três frasquinhos para enviar a um botânico do norte, que tinha enviado por correio um tufo prensado de uma horta antiga. Enfiou um bilhete em papel azul, arestas rugosas. Há algo deliciosamente à moda antiga nesta troca de maravilhas pelo correio. É uma pequena rebelião contra a velocidade.

Estranha se não deveria existir uma biblioteca nacional de aromas, numa sala que cheirasse a cartão e vento. Um sítio onde as crianças pudessem cheirar uma sebe que já não existe e imaginar o que pode voltar. Não um mausoléu. Uma sala de ensaio.

Porque importa quando o ar se lembra

Quando perguntas à Margot porque o faz, olha-te para as mãos. “Porque a perda faz muito barulho”, diz, “e o aroma pode responder de mansinho.” Isso não é ciência. É mais antigo. Os frascos no banco não são monumentos, são convites. Pedem-te que tragas as tuas histórias e vejas o que encaixa.

Saí do atelier com uma tira no bolso e a sensação de ter recebido uma pequena responsabilidade. O cheiro ficou como um amigo cortês, jamais intrusivo, sempre pronto a dizer olá se eu quisesse. Pensei nas flores que vivem só em livros e no ar sobre pulsos cuidadosos. Pensei no modo como guardamos o que amamos, e como o que amamos nos guarda.

Há uma encosta de giz onde nunca estive e que consigo cheirar de olhos fechados. É um truque, sim, e uma ternura. Lembra que nem tudo o que se perde está fora de alcance. O passado não é um país. Às vezes é uma sala, às vezes é um frasco, às vezes é apenas o espaço entre a mão e o rosto quando ergues uma tira de papel e respiras fundo.

Comentários (0)

Ainda não há comentários. Seja o primeiro!

Deixar um comentário